Uma viagem pra fora de mim.



Não sei em qual momento da vida isto aconteceu, só sei que sai de mim...
Já faz tanto tempo, temo não conseguir mais voltar ao meu lugar, mesmo porque o "meu lugar" deixou de me pertencer no momento que deixei de ser eu mesma.Me abandonei sem previsão de volta.
É como se daqui, de fora de mim, pudesse me ver "ali" e me coloco em diversas situações das quais, "aquela" que vejo ali, não teria as mesmas ações das quais eu, de fora de mim ,tive, tenho, ainda vou ter.
Parece confuso e é mesmo...me vendo daqui de fora, percebo que continuo ali, só aguardando a chegada de mim mesma pra tomar e retomar o que é meu...o lugar...E pertencer a meu corpo, ser apenas eu mesma, como sempre fui.
Enquanto isso, esta aqui, que não pertence á lugar algum e que não sou eu, enquanto não volto ao meu lugar, vou vivendo e tentando fazer o que parece certo.
E tenho a impressão de que tentando acertar, erro sempre e o tempo todo e é como se fosse assistida por mim mesma, e recebo criticas minhas a todo momento. 
Cada erro, fico mais distante de tomar posse do meu lugar, voltar a mim mesma e e me sinto fora de mim, desconcertada, fora do mundo, fora de órbita! E cada vez mais.
Á cada erro, mantenho a distancia de tomar o meu lugar e já não consigo me enxergar como antes, isso quer dizer de que pra voltar a mim mesma vai demorar um pouco mais...Não tenho como voltar, não tenho quem me chame de volta nem quem me agarre pela mão, estou só pra me encontrar, se ao menos tivesse deixado algumas migalhas pelo chão, poderia ter traçado um caminho de volta.
Além de fora de mim sem previsão de volta, agora começo a sentir que estou me perdendo, não conseguir me ver, faz com que eu perca as referências de retomar o caminho...agora sinto que estou cada vez mais perdida, porque neste trajeto não vejo rostos conhecidos, estou sozinha e fica cada vez mais difícil achar meu lugar e me sentir em casa.
Tenho a impressão de que vou ter de me acostumar a viver assim, sem pertencer á mim, sem estar no meu lugar, não quero, assim deste jeito não vou terminar bem...Só queria  sentir que esta sou eu, me sentir em casa.
E eu que queria tanto viajar, sair daqui... acabei comprando uma passagem somente de ida pra fora de mim e agora não consigo retomar ao meu lugar, retomar minhas raízes, sentir que estou em casa...Será que vou ficar fora por mais quanto tempo?Temo não aguentar... É ruim ficar longe, daqui afasto á todos,  e me afasto cada vez mais de tudo que sou ou fui um dia, os dias ficam cada vez mais confusos e eu cada vez mais fora...de mim.
Cada vez mais perdida, cada vez mais fora de mim.


Um dia ruim.

Acordou querendo sair da cama, sair do quarto, sair de casa, sair da rua, sair de si.
Nem saiu da cama, achou que não haveria nenhuma roupa que combinasse, nenhuma cor, nenhuma estampa que acompanhasse o seu corpo aquele dia, melhor ficar com o pijama cinza.
E até quis ouvir uma música, mais não havia nenhum som no mundo que á embalasse ou fizesse querer levantar pra dançar e abrir as cortinas, mais nem queria tanto assim abrir as cortinas porque chovia lá fora...era tudo tão cinza, como a cor do seu pijama.
 E naquele dia, ela não queria nada tanto assim, nem ouvir o som... e nem havia som melhor que o som da chuva, que acompanhava o som do silêncio que fazia trilha sonora para um coração muito triste, que chorava, sangrava, se dilacerava .
Pensou que era bom o coração sangrar, o sangue sempre foi e sempre será vermelho, vermelho é melhor do que cinza e pulsa, se pulsa é vibrante e bate, então significa que ainda está vivo, o coração, a cor vermelha.
E se ainda está vivo pode sentir dor, amor, raiva...então pode sair de si, não saindo pra lugar nenhum, contanto que volte pra tentar melhorar as cores, o tom, o som...
Se misturou com as cobertas, se misturou na tristeza, se misturou com o som, com a cor e saiu de si, perdeu o tom, pra não sair na rua,  não sair da cama, pra poder voltar depois, quando cessasse a chuva, que aumentava cada vez mais e os pingos faziam no telhado, um barulho tão forte, que se misturava ao som do silêncio e ia ficando um som agradável, mesmo sendo um som triste...acalma...
E o quarto ficou tão escuro, tudo cinza e vermelho, tudo silencioso e ao mesmo tempo barulhento, tudo fora de si...como ela...pulsando, chorando, chovendo.
E tentava pensar que se algo pulsa ainda há uma chance, porque  está vivo e ainda pode tentar mudar, como o dia amanhã vai mudar, não continuará um tempo ruim é somente hoje, não será pra sempre.
Nada é pra sempre nem a chuva, nem a dor... aquilo tudo era só porque aquele dia, era um dia, de muitos outros...só um dia ruim.

Confraternização.

Chega o final de ano, tudo vira uma grande festa não é?
Incrível quantos sentimentos brotam de nós, assim como flores, especialmente nesta época do ano, a gente se sente de uma maneira da qual não nos sentimos o ano todo, mas como nos filmes românticos ou drama, é no final que sempre choramos.
E a cidade fica toda colorida, enfeitada, muitos sinos de natal, muitas luzes piscando, muitos sorrisos, muitas festas, muitas confraternizações.
Eu, particularmente, sempre me senti feliz, alegre, sempre adorei aquelas demonstrações de carinho, abraços e beijos, feliz natal, boas festas, meu amigo secreto é...Eu sempre fico emotivo no natal, com o coração bom, tudo me faz chorar.
Mesmo o ano todo sendo muito difícil no trabalho, muito corrido com altas tensões, com muitas intrigas e fofocas, grandes disputas e competições para efetivações, mesmo pelo fato de eu nunca ter parado um só minuto do meu dia , pra perguntar como estava a vida do fulano ou beltrano, não porque me faltou tempo por causa da correria do dia á dia, ou por não haver intimidade suficiente, não perguntei porque não me interessa, não quero saber dos problemas alheios, nem me interessa a vida pessoal daquelas pessoas, não quero dividir com elas nada de minha vida, não quero que minha relação com estas pessoas ultrapassasse "colegas de trabalho".
Mesmo assim, as confraternizações sempre me causaram um sentimento de união, cumplicidade e amizade, coisas que nunca fizeram parte do nosso dia a dia o ano todo.
Talvez por isso exista estas confraternizações, para tentarmos fazer em um dia, na verdade em algumas horas, todas as perguntas que nunca nos interessamos em saber o ano todo...E não porque passamos á nos interessar é claro, mas pela mera falta de assunto mesmo, nestas festas é preciso conversar:
-Nossa, quantos filhos você tem? Três, não parece, está em forma hein. Separou? Nossa que barra...
Aquele burburinho estava entrando em minha mente, aquela confraternização, não havia me despertado fortes emoções, na verdade o ano estava chegando ao fim e muito se ouvia falar em final do mundo, e eu não conseguia sentir espirito natalino como nos anos anteriores, não conseguia sentir a  emoção em estar dividindo a mesa com todas aquelas pessoas, não conseguia nomear nada que eu sentia naquele momento, como um "sentimento bom"..só rezava pra que acabasse logo, o ano, o mundo e aquela pocaria toda.Me sentia sufocado o calor o falatório, tantas pessoas dizendo tanta coisa que não diziam nada.
E não conseguia me concentrar, dentro da minha cabeça ouvia minha própria voz dizendo pra mim mesmo:
-O que eu estou fazendo aqui? O que será que estas pessoas fazem aqui? O mundo não está acabando?Então vamos pra casa curtir os últimos momentos do fim...Cada um na sua...com seus problemas, cada um com sua vida, como todos os dias,como sempre fazemos, cada um por si e Deus por todos.
Foi quando me passou outra coisa na cabeça.
Isso que vejo aqui dentro deste restaurante e lá fora, no estacionamento, no trânsito, no mundo...este é o fim dos dias.
Chegamos ao fim sem perceber? Ou percebemos e  fizemos como sempre fazemos, fingimos não ver o que está acontecendo?
 Com certeza isto aqui é o fim dos dias, olhe a falta de paciência em ouvir a história dos outros, um esforço tremendo em se importar com o problema de pessoas que você divide uma sala, divide o trabalho, horas do seu dia e anos de sua vida.
 E passam os anos, a disposição dos móveis muda, o quadro de funcionários muda, o que não muda é a disposição que temos em conhecer realmente aquelas pessoas e realmente nos importar com elas isso não dá pra brotar da gente dá?
 E dai se eu não sei que a fulana que senta na minha frente tem uma filha que tem câncer e por isso faltou três vezes a semana passada, enquanto as "amigas e colegas" do escritório comentavam que era ela muito exagerada, chegava ser "até folgada" tinha que seguir a vida normal pra que tudo voltasse ao normal.
E dai se eu não sabia, que a antiga secretária do Almeidinha, foi mandada embora porque o marido ficou com ciúmes do presente de final de ano que o patrão lhe dera, que foi busca-la no serviço e ameaçou com uma arma o "patrão"Almeidinha de morte.
Almeidinha ficou com tanto medo, que se pudesse teria mandado a moça pra Europa...
E dai se eu não sei e nem quero saber que a faxineira, a tia que faz café pra gente todos os dias, ela sofre de depressão e já tentou suicídio duas vezes, como é mesmo o nome dela? Já trabalha conosco á quase sete anos...hummm, não consigo me lembrar...O nome não importa, e dai, não saber o que tem?
E dai se eu não me importar com o problema do porteiro, do faxineiro, da auxiliar, da secretária?Não tem problema algum, desde que eu seja um bom funcionário, cumpra minhas obrigações e no final do ano vá as confraternizações, abrace aquelas pessoas e finja que me interesso por cada uma delas.
È o fim dos dias, é o fim do "ame ao próximo como a ti mesmo", passamos a amar tanto a nós mesmos que não sobrou espaço pra amarmos mais ninguém.Não existe nós, existe eu...
Notei que eu podia fazer diferente, se algo nesta confraternização me incomodou, é porque fui afetado por toda esta mentira que vivemos todos os dias pra nos mantermos bem, pra nos mantermos em pé.
Se algo aqui me incomodou é porque passei á me olhar e percebi que estou fazendo algo errado e posso mudar de alguma maneira.
Se algo me incomodou aqui, é porque notei que a mudança que gostaríamos de ver no mundo, deveria começar por nós mesmos e que eu posso enxergar além de mim mesmo e me importar com as outras pessoas.
Se parar de achar que meus problemas são maiores e que eu sou melhor do que as pessoas que estão aqui, posso vê-las e enxerga-las realmente, tentar ouvi-las e ser afetado com suas histórias.
E que não há nada de mal em ser algo além  do que "colegas de trabalho", não devemos limitar a nossas relações com as pessoas devido ao ambiente no qual estamos inseridos.Antes de termos uma profissão somos seres humanos, somos iguais, erramos, acertamos, concertamos,  partilhamos um ambiente mais do que isso metade das horas de nossos dias, durante todos estes anos, podermos partilhar nossos problemas e podemos nos ajudar, afinal não se consegue nada sozinho.
Se algo continua me incomodando ao ver que estas pessoas não se importam umas com as outras e estão aqui apenas pra comerem e beberem de graça, para agirem por impulso totalmente bêbadas e virarem assunto para o ano inteiro, talvez isso signifique que algo conseguiu me afetar e me transformar,  hoje sairei daqui um ser humano melhor...
Ou significa que esta confraternização em especial, eu bebi demais e já estou vendo coisas, acho melhor eu ir pra casa,voltar pra minha vida...estou começando a ficar assustado com meus próprios pensamentos.Que tolice, meu Deus...
E se o mundo acabar? Vou morrer sem lembrar o nome da faxineira...