Um dia ruim.

Acordou querendo sair da cama, sair do quarto, sair de casa, sair da rua, sair de si.
Nem saiu da cama, achou que não haveria nenhuma roupa que combinasse, nenhuma cor, nenhuma estampa que acompanhasse o seu corpo aquele dia, melhor ficar com o pijama cinza.
E até quis ouvir uma música, mais não havia nenhum som no mundo que á embalasse ou fizesse querer levantar pra dançar e abrir as cortinas, mais nem queria tanto assim abrir as cortinas porque chovia lá fora...era tudo tão cinza, como a cor do seu pijama.
 E naquele dia, ela não queria nada tanto assim, nem ouvir o som... e nem havia som melhor que o som da chuva, que acompanhava o som do silêncio que fazia trilha sonora para um coração muito triste, que chorava, sangrava, se dilacerava .
Pensou que era bom o coração sangrar, o sangue sempre foi e sempre será vermelho, vermelho é melhor do que cinza e pulsa, se pulsa é vibrante e bate, então significa que ainda está vivo, o coração, a cor vermelha.
E se ainda está vivo pode sentir dor, amor, raiva...então pode sair de si, não saindo pra lugar nenhum, contanto que volte pra tentar melhorar as cores, o tom, o som...
Se misturou com as cobertas, se misturou na tristeza, se misturou com o som, com a cor e saiu de si, perdeu o tom, pra não sair na rua,  não sair da cama, pra poder voltar depois, quando cessasse a chuva, que aumentava cada vez mais e os pingos faziam no telhado, um barulho tão forte, que se misturava ao som do silêncio e ia ficando um som agradável, mesmo sendo um som triste...acalma...
E o quarto ficou tão escuro, tudo cinza e vermelho, tudo silencioso e ao mesmo tempo barulhento, tudo fora de si...como ela...pulsando, chorando, chovendo.
E tentava pensar que se algo pulsa ainda há uma chance, porque  está vivo e ainda pode tentar mudar, como o dia amanhã vai mudar, não continuará um tempo ruim é somente hoje, não será pra sempre.
Nada é pra sempre nem a chuva, nem a dor... aquilo tudo era só porque aquele dia, era um dia, de muitos outros...só um dia ruim.

Confraternização.

Chega o final de ano, tudo vira uma grande festa não é?
Incrível quantos sentimentos brotam de nós, assim como flores, especialmente nesta época do ano, a gente se sente de uma maneira da qual não nos sentimos o ano todo, mas como nos filmes românticos ou drama, é no final que sempre choramos.
E a cidade fica toda colorida, enfeitada, muitos sinos de natal, muitas luzes piscando, muitos sorrisos, muitas festas, muitas confraternizações.
Eu, particularmente, sempre me senti feliz, alegre, sempre adorei aquelas demonstrações de carinho, abraços e beijos, feliz natal, boas festas, meu amigo secreto é...Eu sempre fico emotivo no natal, com o coração bom, tudo me faz chorar.
Mesmo o ano todo sendo muito difícil no trabalho, muito corrido com altas tensões, com muitas intrigas e fofocas, grandes disputas e competições para efetivações, mesmo pelo fato de eu nunca ter parado um só minuto do meu dia , pra perguntar como estava a vida do fulano ou beltrano, não porque me faltou tempo por causa da correria do dia á dia, ou por não haver intimidade suficiente, não perguntei porque não me interessa, não quero saber dos problemas alheios, nem me interessa a vida pessoal daquelas pessoas, não quero dividir com elas nada de minha vida, não quero que minha relação com estas pessoas ultrapassasse "colegas de trabalho".
Mesmo assim, as confraternizações sempre me causaram um sentimento de união, cumplicidade e amizade, coisas que nunca fizeram parte do nosso dia a dia o ano todo.
Talvez por isso exista estas confraternizações, para tentarmos fazer em um dia, na verdade em algumas horas, todas as perguntas que nunca nos interessamos em saber o ano todo...E não porque passamos á nos interessar é claro, mas pela mera falta de assunto mesmo, nestas festas é preciso conversar:
-Nossa, quantos filhos você tem? Três, não parece, está em forma hein. Separou? Nossa que barra...
Aquele burburinho estava entrando em minha mente, aquela confraternização, não havia me despertado fortes emoções, na verdade o ano estava chegando ao fim e muito se ouvia falar em final do mundo, e eu não conseguia sentir espirito natalino como nos anos anteriores, não conseguia sentir a  emoção em estar dividindo a mesa com todas aquelas pessoas, não conseguia nomear nada que eu sentia naquele momento, como um "sentimento bom"..só rezava pra que acabasse logo, o ano, o mundo e aquela pocaria toda.Me sentia sufocado o calor o falatório, tantas pessoas dizendo tanta coisa que não diziam nada.
E não conseguia me concentrar, dentro da minha cabeça ouvia minha própria voz dizendo pra mim mesmo:
-O que eu estou fazendo aqui? O que será que estas pessoas fazem aqui? O mundo não está acabando?Então vamos pra casa curtir os últimos momentos do fim...Cada um na sua...com seus problemas, cada um com sua vida, como todos os dias,como sempre fazemos, cada um por si e Deus por todos.
Foi quando me passou outra coisa na cabeça.
Isso que vejo aqui dentro deste restaurante e lá fora, no estacionamento, no trânsito, no mundo...este é o fim dos dias.
Chegamos ao fim sem perceber? Ou percebemos e  fizemos como sempre fazemos, fingimos não ver o que está acontecendo?
 Com certeza isto aqui é o fim dos dias, olhe a falta de paciência em ouvir a história dos outros, um esforço tremendo em se importar com o problema de pessoas que você divide uma sala, divide o trabalho, horas do seu dia e anos de sua vida.
 E passam os anos, a disposição dos móveis muda, o quadro de funcionários muda, o que não muda é a disposição que temos em conhecer realmente aquelas pessoas e realmente nos importar com elas isso não dá pra brotar da gente dá?
 E dai se eu não sei que a fulana que senta na minha frente tem uma filha que tem câncer e por isso faltou três vezes a semana passada, enquanto as "amigas e colegas" do escritório comentavam que era ela muito exagerada, chegava ser "até folgada" tinha que seguir a vida normal pra que tudo voltasse ao normal.
E dai se eu não sabia, que a antiga secretária do Almeidinha, foi mandada embora porque o marido ficou com ciúmes do presente de final de ano que o patrão lhe dera, que foi busca-la no serviço e ameaçou com uma arma o "patrão"Almeidinha de morte.
Almeidinha ficou com tanto medo, que se pudesse teria mandado a moça pra Europa...
E dai se eu não sei e nem quero saber que a faxineira, a tia que faz café pra gente todos os dias, ela sofre de depressão e já tentou suicídio duas vezes, como é mesmo o nome dela? Já trabalha conosco á quase sete anos...hummm, não consigo me lembrar...O nome não importa, e dai, não saber o que tem?
E dai se eu não me importar com o problema do porteiro, do faxineiro, da auxiliar, da secretária?Não tem problema algum, desde que eu seja um bom funcionário, cumpra minhas obrigações e no final do ano vá as confraternizações, abrace aquelas pessoas e finja que me interesso por cada uma delas.
È o fim dos dias, é o fim do "ame ao próximo como a ti mesmo", passamos a amar tanto a nós mesmos que não sobrou espaço pra amarmos mais ninguém.Não existe nós, existe eu...
Notei que eu podia fazer diferente, se algo nesta confraternização me incomodou, é porque fui afetado por toda esta mentira que vivemos todos os dias pra nos mantermos bem, pra nos mantermos em pé.
Se algo aqui me incomodou é porque passei á me olhar e percebi que estou fazendo algo errado e posso mudar de alguma maneira.
Se algo me incomodou aqui, é porque notei que a mudança que gostaríamos de ver no mundo, deveria começar por nós mesmos e que eu posso enxergar além de mim mesmo e me importar com as outras pessoas.
Se parar de achar que meus problemas são maiores e que eu sou melhor do que as pessoas que estão aqui, posso vê-las e enxerga-las realmente, tentar ouvi-las e ser afetado com suas histórias.
E que não há nada de mal em ser algo além  do que "colegas de trabalho", não devemos limitar a nossas relações com as pessoas devido ao ambiente no qual estamos inseridos.Antes de termos uma profissão somos seres humanos, somos iguais, erramos, acertamos, concertamos,  partilhamos um ambiente mais do que isso metade das horas de nossos dias, durante todos estes anos, podermos partilhar nossos problemas e podemos nos ajudar, afinal não se consegue nada sozinho.
Se algo continua me incomodando ao ver que estas pessoas não se importam umas com as outras e estão aqui apenas pra comerem e beberem de graça, para agirem por impulso totalmente bêbadas e virarem assunto para o ano inteiro, talvez isso signifique que algo conseguiu me afetar e me transformar,  hoje sairei daqui um ser humano melhor...
Ou significa que esta confraternização em especial, eu bebi demais e já estou vendo coisas, acho melhor eu ir pra casa,voltar pra minha vida...estou começando a ficar assustado com meus próprios pensamentos.Que tolice, meu Deus...
E se o mundo acabar? Vou morrer sem lembrar o nome da faxineira...

O que realmente somos.

Quando nos perdemos de nós mesmo... como voltar de onde paramos de ser?
 Se nem nós mesmos sabemos em que momento da nossa existência que desistimos de existir.
A gente se olha no espelho e sabe, não sou mais a mesma,o que aconteceu?E agora?O que faço?
E eu até queria ser eu, mais tenho preguiça de ser o que eu era, dava muito trabalho, então passei a ser como as outras pessoas diziam que eu era...pra convence-las, pra me convencer de que nesta vida, ainda podia fazer alguma coisa.
Ninguém gosta de se sentir impotente.
Antes queria salvar o mundo, hoje penso em salvar-me e basta, se conseguir dou-me por satisfeita.
Quando fiquei tão egoísta?Quando deixei de ser eu...talvez?
Ah, mais não tem problema, estou dentro do padrão da humanidade.
Ninguém quer ser salvo da mentira, ela dá esperança de que podemos ser, fazer coisas que a verdade não te oferece, a realidade é dura e por isso impede as pessoas de ser...quem realmente são, quando são alguma coisa, e se são algo fora do normal, do padrão preferem ser o que os outros pensam que são.
Eu perdi a coragem de ser, quando percebi que minha coragem não me beneficiaria em mundo que é repleto de medrosos, medo de ser porque dá trabalho... É mais fácil ser o que os outros pensam que somos, pra sermos aceitos.
Ninguém gosta de ser odiado ou desconfiar que pode ser odiado...Dói, e quando fazemos de tudo pra nos enquadrar, a dor passa a incomodar não á vemos como privilégios dos vivos, não se encaixa mais no"é melhor sentir a dor, do que não sentir nada", ninguém quer a dor, preferem sentir nada, por isso não fazem nada, e começam a se anular, pra se enquadrar, pra estar dentro, mesmo quando sente-se que está tão de fora e por fora do que acontece quando está dentro.
A gente vai se perdendo porque prefere ser uma boa visão do alheio, prefere não se expor por medo do ridículo e passa a sentir nada pra não sentir dor.
A sensação de não ser deste mundo...porque passei a ser igual a todo mundo.
E quando a gente se acha em um pedaço de papel, uma fotografia, uma poesia...dá saudade de ser o que era antes, dai lembramos que antes havia muito sofrimento e dor por não fazer parte de algum lugar, de algum grupo...o ser humano precisa pertencer á alguma categoria senão não sente-se humano, não sente que existe, quer fazer parte...de algum lugar.
 Ser quem realmente somos pode não ser aceitável, pode ser desagradável e dá trabalho desagradar.
O que realmente somos, nunca neste mundo ninguém saberá, porque a gente só mostra o que os outros querem ver, só fala o que querem ouvir de nós e só ri das piadas que os outros contam pra que se sintam engraçados e aos pucos vamos abrindo mão de quem quem realmente somos, depois nos perguntamos "daquela pessoa que eramos" como se nunca tivéssemos sido aquela pessoa, como se fossemos distintos daquela pessoa que eramos, nós mesmos, antes de sermos como todos pensam que somos e querem que a gente seja.
Só não entendo pra que tanto esforço para parecer igual aos outros se estamos em uma época em que ninguém se olha mais.
Sejamos então quem queremos ser,quem realmente somos, talvez nos dias de hoje, ser nós mesmos, passe desapercebido...